A Queda do Forte Belkarrar

O comandante estava em pé, numa das áreas mais altas do forte Belkarrar. Olhava, com certo pesar, para a planície logo à frente da região montanhosa em que a fortificação se situava.  Aquela era uma posição estratégica para o reino de Dwyrain, pois defendia um dos únicos caminhos conhecidos por entre a Serra dos Dois-Passos. O militar refletiu sobre aquele nome decerto agourento, sabia que histórias contadas por gerações diziam que era impossível não encontrar algo mortal após um simples caminhar. Suspirou. A cadeia de montanhas era decerto perigosa, mas as pessoas da região têm o costume de aumentar uma historia toda vez que ela é contada.

Ele deu um murro na murada, mal se dando conta dos pequeninos pedaços de pedra que se desprenderam do bloco polido sob o áspero contato de sua manopla de metal. Aquele golpe representava toda a sua frustração, possuía toda a amargura que poderia canalizar em seus músculos. Olhou novamente para a o horizonte, não com a esperança de quem procura por boas novas, mas com uma calma melancolia de quem sabe que o fim se aproxima e o aceita. A planície, desde sete dias atrás, estava apinhada de inimigos, o horizonte desabrochava em um pontilhado de homens que formavam uma tropa de assalto do exército Thraslin – nome atribuído aos moradores de Thraslia – composta por pelo menos três mil e quinhentos soldados, prontos para matar todos os que estavam no forte que guardava a única rota segura através da serra.

Em qualquer outra ocasião o comandante teria combatido a ameaça sem medo, sem pestanejar… Mas naquele dia… Naquele dia não havia esperança.

Continuou a olhar aquele formigueiro humano que faria vezes de algoz, mas o fez de modo deveras distraído; sua cabeça estava longe. Estava na capital, Kiell, a bela cidade das gaivotas, o lugar onde nascera e que jamais veria outra vez. Pensava em sua família e amigos, que não ouviriam suas últimas palavras… Pensava nas escarpas rochosas… Pensava na algazarra que os pássaros cujo nome atribuíam ao lugar faziam ao pôr do sol… Pensava…  Pensava em Mörwina, mulher a qual nunca mais veria sorriso ou tocaria os lábios… Olhou para baixo, desolado. A cabeça tombou com o pesar.

Um vento, frio e gélido – fenômeno que  evocava todo medo e dor dos soldados que morreriam naquele dia -, bateu contra o rosto do senhor de guerra e jogou para atrás do ombro as mechas de cabelo que lhe caíam sobre o rosto. A desobstrução lhe permitiu ver uma pequena mancha que se deslocava do exercito inimigo. Sua perdição se aproximava rápido. Vinha a cavalo.

O comandante riu. Um riso seco. Desesperado. Algo destituído de alegria e que carregava apenas a ironia e o pesar. Teria que descer. Para então pronunciar as palavras que selariam o seu destino e o de todos que estivessem na construção. Pensou em não fazê-lo. Pensou em ignorar aquele emissário e ficar ali, lamentando o que perderia e sonhando com tempos felizes. Mas não… Havia soldados sob seu comando. E, morto ou vivo, incapaz ou não, ainda era seu comandante.

                                                          …

O mensageiro inimigo esperava às portas do Belkarrar. Estava sozinho, desarmado, e deste mesmo jeito foi o comandante Gallahan para recebê-lo. Ele não exibia mais pesar, não demonstrava tristeza, era novamente o líder que sempre fora. Não porque estivesse tudo em ordem, mas porque manipulações, subterfúgios e falsas aparências também faziam parte de qualquer guerra e ele fora treinado para isso… E era o melhor.

– E então, Comandante Gallahan. Hoje faz exatamente uma semana desde nosso último encontro, ainda pode optar por uma alternativa pacífica para esse embate. Como eu lhe disse, você e seus homens se rendem, entregam suas armas, admitem nossa soberania e serão poupados… Não sabemos o número exato em que estão, mas temos certeza de que a inferioridade numérica de vocês é um fato inegável.

Um sorriso amargo se formou nos lábios do senhor de guerra. Sim, ele sabia da desvantagem que possuía. Sabia que contava com apenas um décimo de suas tropas quando os exércitos de Thraslia chegaram à porta. Apenas trezentos e um, de três mil homens, restavam na fortificação quando os bastardos Thraslin decidiram se mostrar. E hoje, sete dias depois do ultimato ser lançado, Gallahan teria sorte, muita sorte, se ainda houvesse pessoas dispostas a lutar, se ainda restassem homens que não haviam fugido conforme os dias de cerco passavam. No entanto, ele apenas olhou nos olhos do mensageiro inimigo e lançou-se à guilhotina do mesmo modo que um homem agarra a luz da esperança.

– Eu e nenhum dos meus soldados nos renderemos, seja o inimigo mortal ou o próprio Dynlaeth da guerra. Não admitiremos a soberania de ninguém que ande ou pense como todos os outros homens. E, principalmente, não nos rebaixaremos perante um exército de rufiões e saltadores. Portanto, caro mensageiro Thrraz – disse o comandante utilizando um termo depreciativo, uma paródia do nome do reino inimigo –, aconselho-te a sair das portas do Belkarrar, ou a batalha terá início aqui mesmo, entre nós dois; e no futuro, quando histórias forem contadas sobre sua derrota vergonhosa, todos saberão quem foi o primeiro a cair neste dia.

Conforme o Dwyrer falava, a boca do Thraslin ia se reduzindo a um fino traço que denunciava toda a sua raiva. Ele sabia que sozinho não era oponente páreo para o capitão, mas tamanha era sua fúria que, caso tivesse uma arma, teria iniciado um duelo entre os dois. Desarmado, porém, limitou-se a uma bravata antes de dar as costas ao Forte Belkarrar e dirigir-se ao seu próprio pelotão.

– Cuspirei em seu túmulo, capitão. E ele será feito com as mesmas pedras do lugar em que se escondeu como um rato nos últimos sete dias.

Gallahan ficou algum tempo a olhar o cavaleiro que se distanciava e então, lentamente, voltou ao seu posto, na sacada mais alta do forte.

                                        …

O exército inimigo se aproximava. O mar de soldados inimigos se deslocava para o topo do primeiro monte da Serra dos Dois-Passos. Logo cairiam sobre o Forte Belkarrar.

O capitão observava o avanço das tropas adversárias com a serenidade de alguém que já aceitou a morte. Suspirou mais uma vez e virou-se para seus comandados. Demorou-se em um jovem de idade tenra que talvez nunca tivesse sentido o toque de uma mulher e então falou-lhe, com autoridade.

– Soldado – disse o capitão – O levante das nossas tropas.

A resposta foi imediata e sem pestanejos.

– Comandante, além do senhor existem dezessete homens, todos estão aqui. Dez combatentes, cinco arqueiros e dois sem qualquer experiência militar: um escriba e um camponês de uma vila próxima, que nos últimos dias se juntaram à nossa causa. Somando com o senhor, comandante, somos dezoito no total.

Gallahan olhou demoradamente para os olhos de cada um de seus comandados. Viu que estavam dispostos a morrer naquele dia. Dos três mil soldados que havia no forte, dois mil e setecentos tiveram que ser movidos de última hora para outro confronto que se formava ao norte. No final, dos 301 que ficaram a guardar aquele ponto fundamental, sobraram apenas 18 bravos homens. Era com esse número que iriam enfrentar os inimigos.

O comandante visualizou mais uma vez a onda de inimigos que chegava. Já haviam alcançado a base do forte, demorariam apenas alguns minutos para romper os portões e adentrar o Belkarrar. E então, sem dizer uma palavra, apenas deixando o ar inflar seus pulmões, baixou o visor de seu elmo prateado e sacou sua espada longa. Os outros soldados o imitaram, desembainhando suas próprias armas. Todos mantiveram-se em silêncio, contemplando o fim que viria. Este estado foi logo quebrado pelo capitão, que sussurrou aos seus comandados.

– Nos vemos em outra vida.

Houve uma pequena pausa e então Arthane Gallahan gritou, pondo todo seu espírito de guerreiro no ato.

– Arqueiros, preparar flechas!

A seguir veio a última ordem que receberam em vida.

E então, morte.

FIM

Escrito em 2009

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