Anjos em Ethandun

Ei, garoto, não precisa ficar com medo. Pode parar de me olhar de trás daí dessa carroça velha e vir até aqui se quiser, em vez de me espiar como um moleque tentando ver uma mulher nua. Posso ser um dinamarquês velho, barbudo, fedorento e caolho, mas até onde me recordo não tenho mania de morder a mão que me alimenta e no presente momento eu trabalho para seu pai, um saxão de Wessex.

Calma, calma… He he… Não precisa ficar irritadinho, sei que sabe de onde seu pai é. Apenas perdoe a mania que esse velho skald tem de querer embelezar e trabalhar cada coisa que fala, mas, afinal, é costume de profissão. O que é um skald? Quer saber o que é um skald? Posso te contar, mas… Hmmm… Que tal fazermos uma troca: Você vem até aqui, senta onde preferir e então lhe conto o que é um skald e mostro em primeira mão o que um deles faz. Tudo bem para você?

Isso! Agora sim conversando como dois homens civilizados do ano de 903! Alias… Não… Ainda está faltando uma boa cerveja, mulheres com grandes tetas e um suculento pernil de porco assado numa fogueira… Acho que vamos ter que nos contentar sem isso. Se bem que seus malditos padres chorões vivem dizendo coisas sobre garotos de sua idade serem proibidos de ter essas coisas. Certamente meninos dinarmaqueses com doze verões são muito mais felizes que moleques anglos. Hã?! Parar de enrolar e dizer o que é um skald? Ah… Claro, claro, já havia até me esquecido. Nos últimos anos minha memória não tem sido muito boa para coisas recentes… Apenas para o que há muito se passou…

Indo direto ao ponto, antes que você, vermezinho… Um skald é o equivalente a um bardo, para vocês saxões. Contamos histórias, criamos poemas, falamos de guerreiros lendários e seus feitos em batalha… Esse tipo de coisa… Com a óbvia diferença de que somos muito melhores do que qualquer um de vocês virá a ser, claro.

O quê?! Duvida da minha habilidade com histórias?! Raá! Garoto, eu sou Bragi Boddason e isso até mesmo um fedelho anglo-saxão cheirando a leite como você deveria saber. Eu servi aRagnar Lodbrok e vi sua ruína dentro do fosso. Estava lá quando seus filhos o vingaram, capturando e matando Aelle de Jórvik, estirando suas costelas para fora pelas costas, formando a águia de sangue. Presenciei a queda Ivar e Hubba Lodbrok, vendo, assim, o fim de uma linhagem destinada a saques e conquistas… E meus olhos viram a última grande derrota da Dinamarca… A única que não poderíamos ter perdido: A batalha de Ethandun.

Pare de matraquear besteiras garoto! Não ouça essas conversinhas sobre saxões serem melhores na espada do que os vikings. Aquela batalha não foi ganha de modo justo, homem contra homem, skjaldborg contra skjaldborg, parede de escudos contra parede de escudos… Não… Não foi assim que aconteceu… Do contrário, os guerreiros de Guthrum, e isso que eram: guerreiros de verdade, teriam destruído aquele amontoado de camponeses que Ælfred chamava de exército… Mas vocês tiveram ajuda inesperada… E, pelas oito patas de Sleipnir, como foi inesperada!

Pare com suas ofensas idiotas, criança, já falei. Não importa o quanto fique cacarejando, como o frangote que é, nunca vai fazer com que saxões sejam melhores guerreiros que os dinamarqueses ou mesmo qualquer povo viking. E eu não estava inventando desculpas para a derrota! Vocês tiveram sim uma ajuda desleal e se não fosse por aquilo esse lugar seria uma nova Dinamarca e nós dois estaríamos falando em dinamarquês. Que ajuda foi? Eu estava pra falar isso, garoto idiota, espere eu começar a maldita história como eu disse que iria fazer logo quando você veio para cá. Te digo apenas que nessa vez, nessa única e exclusiva vez, a história contada pelos seus padres remelentos é a mais próxima da verdade…

Aconteceu muito antes dos anglos ousarem chamar esta terra de Englaland, antes de Guthrum, o rei de Danelaw – pedaço de terra que os dinamarqueses conquistaram aqui, em Britannia – enfraquecesse e se cristianizasse, adotando como novo nome Æthelstan… Ora, veja só que ridículo: Um dinamarquês chamado Æthelstan. E ainda por cima o padrinho de batismo dele fora o próprio Ælfred! Me pergunto o que dirão de Guthrum daqui a alguns anos… Bem, não importa. Para o que vou contar basta saber que tudo começou com a tomada de Chippenham.

Acho que devia estar em torno de 875… Não funciono muito bem pra datas… O que importa é que foi perto do natal. Ælfred, seu tão adorado rei, estava em Chippenham cuidando de algum afazer quando tudo aconteceu. O ataque foi rápido. Brutal. Em poucas horas a cidade havia caído e lá erguemos nossas paliçadas e transformamos a cidade em um forte. Ælfred – aquele que agora é chamado de “O grande” –, mal conseguiu escapar com vida daquele cerco, fugiu com parte de sua guarda real para então se embrenhar nas florestas ou pântanos do país. Não sabíamos que ele estava na cidade, o que foi um erro, deveríamos ter essa informação dos nossos espiões. Se seu rei tivesse caído ali, toda história seria diferente.

Aquela foi uma invasão gloriosa, tendo a cidade como forte, rapidamente nos espalhamos pelo seu país e logo não havia uma pessoa que não houvesse visto o brilho de uma lâmina dinamarquês ou ouvido relatos assombrosos sobre os ataques. Saqueamos, matamos… Fizemos o que queríamos com este lugar, sempre zombando de seu rei covarde que se escondia no mato como um cão. Mas Guthrum sabia que tudo só estaria acabado quando a cabeça de Ælfred estivesse pregada em um espeto, onde todos pudessem ver.

O tempo mostrou que não precisaríamos procurar pelo seu rei destronado, víamos por vezes cavaleiros solitários ou padres abatinados cruzando o reino e levando informações para onde pudessem. Os senhores de grandes pedaços de terra se alvoroçavam, pareciam se preparar para algo que viria. Talvez pensassem que não tínhamos espiões e não sabíamos o que iria acontecer, ou talvez soubessem disso e contavam com o nosso conhecimento. De uma maneira ou de outra, Ælfred estava convocando o fyrd.

Da maneira que eu falo talvez pareça que o rei convocava grandes hordas de guerreiros para combater em seu nome, mas não era assim. O fyrd, como deve saber… Ah, cale-se! Sei que sabe o que é o fyrd, mas faz parte da minha história contar. Boca fechada? Ótimo. O fyrd era composto pelos homens de uma região capazes de portar uma arma. Qualquer arma. Portanto, em vez de guerreiros Ælfred convocou bandos de camponeses com enxadas, pás e espadas velhas para lutar. Todos foram convocados para um lugar onde as tropas saxônicas tivessem uma grande vantagem pelo terreno. Ælfred queria derrotar os dinamarqueses em uma grande batalha e então tomar suas terras de volta. Estava disposto a arriscar muito, pois sabia que demoraríamos muito para organizar outro exército, devido à distancia de nossa terra natal. E a luta logo aconteceria.

O dia da batalha veio rápido. Com os preparativos prontos Guthrum marchou até onde o rei inimigo se encontrava, sedento por acabar aquilo e garantir sua estada na Britannia. Ælfred tinha números. Sua formação possuía mais gente e o terreno inclinado tornaria o combate difícil para o lado da Dinamarca. Porem nós tínhamos guerreiros. Cada um com uma boa espada e uma boa armadura. Subimos o morro com disciplina, cada um protegendo a si e ao colega da esquerda com seu escudo e, mesmo cansados, estávamos vibrantes quando os escudos se chocaram contra os do inimigo na metade do morro. Primeiro houve dificuldade. Os melhores guerreiros saxões ficavam na frente das fileiras, tentando abrir nossa parede e dar passagem para os covardes, mas logo rompemos essa linha e o pânico se instalou entre seu povo.

O chão foi tingindo-se de vermelho a cada golpe. Corpos se amontoavam no chão e corvos observavam de longe, esperando uma oportunidade para sua própria pilhagem. Com a parede de vocês quebrada logo chegamos perto do seu rei, cada um ávido pelo prêmio e honrarias que teria ao matá-lo. Porém, quando a guarda pessoal de Ælfred estava caindo e o próprio rei havia desembainhado sua espada e se preparava para lutar contra o próprio Guthrum… Aconteceu.

Todos viram as bolas de fogo caírem do céu nublado. Primeiro pensamos que o fim do mundo havia chegado e que todos, saxões e vikings, morreriam ali mesmo. Mas não era obra de um demônio. Eram anjos. Aquelas criaturas aladas desceram com toda sua majestade emplumada portando grandes espadas de fogo. No início ninguém se moveu, maravilhados e aterrorizados com a súbita aparição. Apenas quando os seres divinos pousaram ao lado de Ælfred e começaram a golpear seus inimigos, fazendo com que o cheiro de carne dinamarquesa queimada alcançasse a todos, a correria começou. Nossos homens debandaram como formigas fugindo das brincadeiras cruéis de um garoto. A maioria não saiu daquele lugar com vida e os que viveram, como eu, para contar a história, viram ao longe os anjos desenharem sobre o monte o que hoje é conhecido como Cavalo Branco de Westbury. Dessa forma marcando aquele dia em que o divino interagiu com o mortal e salvou a vida e o reino de um fiel rei cristão.

Não fale nada sobre isso garoto, sei que os camponeses e o próprio Ælfred quiseram levar o crédito todo da coisa, dizendo que foi uma batalha sensacional e que com espadas em punho expulsaram todos os vikings em um grande confronto… Mas aconteceu do jeito que eu falei. Depois disso não foi difícil para Guthrum correr com o rabo entre as pernas de volta para Danelaw, mudar o próprio nome para Æthelstan e se cristianizar… Não com o que havia visto…

Mas há coisas que escapam do conhecimento da maioria dos homens e de quase todos os reis… Talvez apenas os loucos, os bobos da corte e alguns andarilhos desconfiem… O que acontece é que ao mandar seus anjos para a guerra, Yavé, seu Deus, feriu um acordo muito antigo e Odin – deus nórdico que por vezes se disfarça de um contador de histórias andarilho e caolho – não pretende deixar as coisas como estão.

Então, quando chegar a hora, Sigurd, tenha a certeza de que escolheu o lado certo… E lembre-se das antigas histórias contadas por sua mãe…

Escrito em 2009

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