E Para o Mendigo, Mais uma Vítima

Os olhos de Sarah arregalaram-se quando ela percebeu o mendigo – aquele mendigo – surgir da penumbra noturna a alguns metros atrás de Alejandro. Uma lâmina sem brilho decorava as mãos da aparição.

A mulher quis gritar, elevar sua voz estridente para alcançar a todos da redondeza em um sonoro pedido de socorro. Contudo, mesmo coxo, o mendigo era rápido, muito rápido. Mal havia ela conseguido desvencilhar-se dos apaixonados beijos de Alejandro e a ameaça já estava logo ali…

Confusão e uma pequena dose de divertimento se instalaram no semblante de Alejandro. Não havia percebido o perigo e imaginava que sua amante estivesse preparando alguma espécie de joguete. Pouco depois já não imaginava mais nada, em seu rosto estampava-se uma surpresa sofrida, enquanto no de Sarah apenas o terror. Dois palmos de um metal prateado haviam atravessado o pescoço do latino.

Sarah recuou, apavorada, as mãos sobre a boca, como que recusasse a visão, não acreditando que algo como aquilo pudesse sequer ser concebido. Mas ela sabia, desde que saíra com Alejandro da boate Crystal e pôs os olhos naquele mendigo tão sinistro, soubera que algo estava para acontecer… Algo ruim. De início, seus olhos haviam ignorado aquele homem, como fariam com qualquer morador de rua, contudo, antes que seus olhos pousassem sobre outra coisa, o velho manco virou-se e voltou sua atenção sobre o casal. Naquele momento tão distante e enevoado Sarah não pôde deixar de estacar, temerosa. O olhar que a atingira era tão direto, poderoso, tão carregado com a sábia austeridade de um ancião, misturada com frieza e doses de mau humor, que os pelos de seu corpo se eriçaram de medo. Ela havia apertado o passo e sussurrado para Alejandro o acontecido. Este, quando tentou avistar o vadio que tanto a amedrontara, nada vira. O carismático latino logo fez da situação uma brincadeira, discorrendo animadamente sobre os efeitos misteriosos que algumas margueritas podem causar ao início de uma noite sem lua de outono, fazendo com que sua assustada companheira risse e esquecesse completamente os seus medos.

Porém, o mendigo não era fruto de uma imaginação moderadamente alcoolizada. Ele havia saído de vista e seguido o casal. A intuição de Sarah estava certa… E agora Alejandro estava morto.

O mendigo retirou lentamente sua arma do pescoço da vitima; remorso algum resplandecia em sua face, mas, por dentro da máscara de aparente apatia, parecia de alguma forma exultante e satisfeito. Sarah tremeu diante do ruído molhado e gosmento que acompanhou o retirar. Aquilo parecia-lhe tão mais terrível que o próprio golpe que ceifara a vida de seu companheiro que ela preferiu isolar o pensamento longe de sua mente.

Os olhos do latino estavam congelados numa eterna surpresa; sua boca pendia patética e entreaberta, deixando escapar um rumor que vinha do fundo de sua garganta; o corpo era um mistério, encontrava-se estático – pernas retas, braços parados, queixo erguido –, como que petrificado. Nenhum músculo de Alejandro parecia se mover, seus joelhos não davam sinal de perder a força e dobrarem-se. Parecia que, mesmo morto, ficaria em pé eternamente.

Sarah não percebeu o estranho fenômeno que acometia o latino. Os olhos da garota voltavam-se para uma cena do presente, mas tudo o que ela enxergava era o passado. Alejandro havia sido tão carinhoso, cuidadoso… No tempo em que ainda estava abalada com o témino do namoro com o Carlos, quando achava que suprimir sua tristeza com copos e mais copos de bebidas de alto teor alcoólico era a única coisa a fazer, o carismático barman havia lhe dado força, ajudado, lhe tirado daquela copiosa fossa de auto-piedade e lamúria. Primeiro ela aceitara sair com o latino apenas porque estava em um momento frágil e precisava de companhia. Contudo, após poucos encontros com Alejandro, começou a vê-lo com outros olhos. Ele era bem humorado, atencioso e um falante tão bom quanto um ouvinte, conseguia compensar sua falta de estudos com curiosidade e esperteza. Sarah sentia-se bem quando estava com ele, sentia-se alegre. Já fazia quase duas semanas que estavam saindo e ela estava disposta a levar a relação a outro patamar, sabia que ao apresentar um namorado de uma classe mais baixa iria trazer alguns problemas com sua família, mas estava disposta a…

O novo golpe do mendigo despertou Sarah de seus devaneios – retirando-a das paragens labirínticas que, por vezes, são as memórias. Desta vez o ataque não fora uma estocada, mas sim um corte horizontal dirigido com maestria à altura do pomo de adão de Alejandro. A força utilizada, somada com a qualidade da lâmina, poderia facilmente decapitar um homem. E foi o que aconteceu. O fio percorreu toda a extensão do pescoço do latino quase como se ali não houvesse resistência; a despeito de tamanha violência, o único ruído que se fez foi um singelo “zap”, produzido bem após o trespassar da carne, apenas quando a arma cortou uma grande extensão de ar além de sua vítima.

Rolando pelo lado do corpo vitimado, a cabeça decapitada caiu a alguns passos do agressor. Este, contudo, não parecia satisfeito em simplesmente mutilar seu alvo. Assim que o sinistro projétil conheceu o duro acolher do solo, reclamando com um baque abafado em tal processo, o mendigo resolveu novamente judiar da carcaça, ainda ereta, à sua frente. Com certa dificuldade em manter-se só em uma das pernas, o homem desferiu um chute no flanco daquilo que um dia atendera pelo nome de Alejandro, que foi projetado quase três metros adiante e finalmente caiu ao chão.

Sarah já não se continha mais de tanto terror. Lágrimas escorriam em abundância pelo seu rosto, manchando suas bochechas de negro devido à maquiagem que era arrastada; o coração palpitava em toda sua intensidade, batia sem dar sinal de querer refrear, a cada instante demonstrando intenção de querer explodir o tórax onde estava armazenado e ganhar liberdade; grandes manchas molhadas surgiam na camisa da garota, conforme o suor descia a cântaros pelo seu corpo, deixando-a com frio e com um desconforto que só seria percebido muito mais tarde.

Logo a mulher estava balbuciando coisas sem sentido, os lábios e a língua não conseguindo de todo traduzir as informações que um cérebro confuso enviava. Aos poucos uma pergunta se formou em sua boca, ela carregava o clichê dos que vêem alguém querido ser abraçado pela morte.

– Por quê? – perguntou Sarah por fim.

Quase não se moveu. O único movimento que o mendigo desperdiçou com a mulher foi volver a cabeça em sua direção. Primeiro não respondeu nada, limitou-se a fitá-la direta e intensamente, quase sem piscar. Era um olhar frio e sem empatia, mas não o olhar de um assassino, o que aqueles olhos revelavam era um homem severo e um tanto quanto mal humorado – as rugas, reflexo de uma idade avançada, juntamente com os lábios crispados, só faziam aumentar essa imagem. Contudo, acima de tudo o que poderia ser dito, aquele olhar dava medo.

– Porque ele merecia. – respondeu por fim, colocando um final no silêncio inquietante.

– Merecia? Merecia?! – berrava entre ganidos e soluços. – Ele é… Era uma das pessoas mais doces e… e… e gentis que eu conheci e…

– Vê algum sangue aqui, mulher?! – disse secamente.

Era verdade. Instantaneamente Sarah parou de chorar, aturdida. O horror e a violência da situação não a deixaram perceber o fato mais estranho daquela noite: por mais atrozes que fossem os ferimentos, nenhuma gota de sangue esvaíra-se de Alejandro.

Sarah olhou para o mendigo, confusa. Mas ele nada disse, seu lábio superior formou um esgar de nojo para a mulher e um rosnado de insatisfação brotou de sua garganta. Com um ligeiro sinal indicou para onde a mulher deveria olhar. Era a cabeça decapitada de Alejandro. onde a peça macabra deveria estar havia apenas um líquido negro.

– Não… Entendo… – falou, enquanto recuava alguns passos, as lágrimas quase já haviam secado em seu rosto.

E então o borbulhar começou; um som semelhante ao ferver de um líquido escapava do corpo mutilado e exangue, logo sendo acompanhado por violentas convulsões. Aos poucos a carne morena do homem morto, bem como suas roupas, começaram a lentamente dissolver, como que um poderoso ácido estivesse em ação. No final, onde aquilo que um dia pareceu Alejandro estava, havia apenas uma disforme massa acinzentada.

Sarah via aquilo de uma distância cada vez maior. Suas pernas involuntariamente davam pequenos e assustadiços passos para trás. Contudo, nem mesmo o crescente espaço que a separava… daquilo era o suficiente para fazê-la perder certos detalhes. Ela via aquela gosma cinza mexer-se e convulsionar-se, via que aquilo… seja lá o que fosse, tinha vida… e fome.

Tentáculos começaram a se expandir do corpo principal da coisa-gosma, perscrutando as redondezas, farejando. A zoada de fervura havia acabado, a criatura agora era tão silenciosa quanto a morte… E procurava pelos vivos. Começou a se mover, arrastando-se tal qual uma lesma monstruosa.

– É um mímico – disse o mendigo dando as costas para Sarah e fitando a monstruosidade. Seu namorado foi assassinado e teve sua aparência roubada. Você seria a próxima… E então outro desses seria criado.

– Mímico…?

– Mocinha, é melhor correr – rugiu entre os dentes, enquanto rechaçava com sua lâmina um dos tentáculos que tentava alcançá-lo.

Com aquela última imagem na mente, Sarah correu. Deu as costas para tudo aquilo e não mais olhou para trás. Por muito tempo as cenas daquela noite atormentariam seus sonhos. Passaria o resto de sua vida tentando negar o que havia presenciado e até o dia de sua morte sempre sentiria um súbito mal estar quando o sobrenatural fosse abordado.

Com o mendigo a coisa era completamente diferente. Tentara, como Sarah, esquecer que vira aquilo no Vietnã, muitos anos atrás, mas fora forçado a reconhecer a existência do sobrenatural, a aceitar tudo aquilo. Monstros ainda assombravam seus sonhos, mas daria o troco, protagonizaria os piores pesadelos dos seres sobrenaturais… de todos eles.

Deckard Smith estava ali para matar a criatura.

E foi o que fez.

(Escrito em janeiro de 2011)

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